Postada em 11/03/2020 às 12:53:48
Por José Castello
História narra eventos sobrenaturais desencadeados por uma entidade invisível
A nova edição brasileira reúne três versões da mesma história. Abre com a versão definitiva, de 1887, mas nos traz também a primeira versão, Carta de um Louco, publicada por Maupassant em 1885 na revista Blas, seguida da segunda versão, já batizada como O Horlá, de 1886. A reunião das três versões tem, não apenas, importância para os estudiosos da literatura; ela apresenta ao leitor comum o modo como outros textos (“estranhos”) se escondem no interior de qualquer ficção.
“Parece que o ar, o próprio ar que não vemos, está repleto de forças incompreensíveis”, diz o narrador da versão definitiva, escrita em forma de diário íntimo. Nossos sentidos são frágeis. Nossa percepção do mundo está, em consequência, limitada por essas fragilidades. O que conhecemos é sempre parcial: uma parte se furta e se esquiva, o que não significa dizer que ela deixe de atuar e de influenciar nossas vidas. O diário relata como um homem, aos poucos, só a partir de pequenos sinais quase desprezíveis, começa a se dar conta de que convive com um ser estranho.
Durante a noite, uma garrafa de água colocada à sua cabeceira se esvazia sozinha. O vaso de leite se evapora misteriosamente também. Copos se quebram dentro dos armários da sala. O talo de uma rosa, bem à sua frente, se dobra, como que empurrado por uma mão invisível. Atônito, o personagem de Maupassant se agarra, primeiro, à ação do sobrenatural. Mas ele logo conclui que não há mistério algum – não há paranoia, como hoje tendem a argumentar os comentaristas do presente. “Não entendo, porque a causa me escapa”, mas, mesmo desconhecida, ela existe, não deixa de agir e de produzir consequências.
Aos poucos, o narrador de Maupassant descarta a hipótese mais fácil da loucura. O Estranho é, também, o Invisível que, embora não se deixe ver, continua a agir e, portanto, existe sim. Recorda, então, do que lhe disse um monge a quem visitou no monte Saint-Michel: “E alguém chega a perceber a centésima milésima parte de tudo o que existe?” O religioso lembrou, então, o exemplo do vento, que tomba edifícios, arranca árvores, destrói falésias e atira grandes navios contra os recifes. “O senhor já o viu, ou consegue vê-lo? Ainda assim ele existe”. O Estranho que o Horlá encarna não é o inexistente que nos assombra, mas o desconhecido que delimita a dimensão de nossa ignorância. Não é uma questão de nele “acreditar” – ele não precisa de nossas convicções para existir. As convicções, elas também, apenas o encobrem. O Horlá criado por Maupassant teria chegado à Normandia, onde a história se ambienta, a bordo de um veleiro brasileiro que subia o rio Sena. O narrador avistou o barco dos jardins de sua propriedade, nas cercanias de Rouen.
Não se trata de um louco. Ao contrário, é a negação do Estranho e de sua presença esquiva que o perturba. Na versão de 1886, escrita na forma de um relato médico, depois de relatar o caso de seu paciente, o doutor Marrande, ilustre alienista, conclui: “Não sei se este homem está louco, ou se nós dois enlouquecemos... ou se... se nosso sucessor de fato chegou.” A presença do Horlá vem romper a cegueira humana. Vem desmascará-la.
Aqui se afirma a atualidade do relato de Maupassant. O Estranho não é aquilo que brilha e nos assusta nos noticiários da TV, ou que incendeia nossas parcas certezas. A leitura de O Horlá nos ensina que ele se esconde nas pequenas coisas, parece improvável e até desprezível, mas é justamente assim, camuflado e esquivo, que age sobre nós.